Globo promete eliminar a crueldade em reality de Claude Troisgros

Enfrentei a chuva do Rio de Janeiro para ir ao cinema ver “Coringa”, o filme de que todos estão falando. Não me arrependi.
De volta ao conforto do lar, liguei a TV e assisti, pela primeira vez na vida, a um episódio de “Pesadelo na Cozinha” –versão brasileira do reality show norte-americano “Kitchen Nightmares”, exibida pela Band. No programa original, o equino Gordon Ramsay “salva” restaurantes em petição de miséria com uma assessoria pretensamente grátis. Aqui, o papel é desempenhado por Erick Jacquin, também em “MasterChef Brasil”.
Um tema central de “Coringa” é o bullying. A crueldade aplicada por total falta de empatia. Sem entregar spoilers, o filme mostra como o bullying é uma fórmula de sucesso na TV. Silvio Santos, o amoral, sempre soube disso e praticou com rara destreza a humilhação do indefeso.
Os programas de reality seguem a toada. Escoram-se numa cumplicidade artificial com o espectador –induzido a acreditar que tem algum poder sobre a vida dos participantes confinados, desorientados e torturados por livre e espontânea ganância. Eles são os ratos de laboratório e nós temos o botão que dá choque. Um dos ratos vai sair de lá rico e famoso, um verdadeiro Mickey Mouse, então o bullying se justifica.
Uma possível virtude de “Mestre do Sabor”, que estreia hoje à noite na Globo, é romper com essa fórmula maldosa. No lançamento do programa, feito há algumas semanas nos estúdios da emissora, elenco e equipe técnica afirmaram que a competição vai exaltar os vencedores sem tripudiar os vencidos.
Esperemos. Não vejo motivo para duvidar de Claude Troisgros e de Kátia Barbosa. Além de cozinheiros de talento indiscutível, são pessoas que eu conheço e admiro. O São Tomé que reside em meu espírito, contudo, recomenda cautela nos afagos. Quanto a José Avillez, Leo Paixão e Batista (o braço-direito de Claude), sei apenas de suas figuras públicas. (Comi uma excelente empada de cozido num dos restaurantes do Avillez em Lisboa, o que me parece um vínculo um tanto frágil.)
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Já o “Pesadelo” da Band abusa do bullying para criar tensão e expectativa.
O episódio a que assisti mostrava um restaurante indiano na Vila Mariana, São Paulo. Por coincidência, já almocei lá: a comida não me impressionou, e o ambiente exibia um desleixo que me levou a suspeitar do asseio.
Bingo. Jacquin encontrou uma cozinha imunda e desorganizada, cheia de imigrantes indianos que mal falavam português.
Já havia visto vários episódios da matriz gringa do programa, o suficiente para notar que o roteiro é rígido, petrificado. A narrativa segue sempre a mesma sequência de eventos:
- Um comerciante em apuros pede a ajuda do chef famoso para salvar o restaurante que naufraga;
- O chef visita as instalações e constata práticas inadequadas, quando não deploráveis. Grita, humilha, joga comida fora. O dono do lugar tem vontade de explodir os miolos do sujeito, mas sai para fumar um cigarro e dar um depoimento emotivo para a produção;
- Depois de limpeza e ajuste precários, o chef famoso acompanha o serviço do restaurante. Nada dá certo. Os clientes, furiosos, abandonam a mesa sem comer. O chef berra mais alto. A equipe do restaurante fica mais desorientada do que o urso Colimério.
- A produção do programa decide que a única solução possível é fechar temporariamente o restaurante para uma reforma. Dono e equipe não participam e não dão palpites na restauração.
- A equipe do restaurante é levada à instalação renovada e se deslumbra com as mudanças. O chef famoso apresenta também um novo cardápio, muito mais inteligente do que o antigo.
- O chef famoso participa do primeiro serviço depois da reforma. De início, tudo parece que vai dar muito errado. Mas o chef grita, berra, urra e rosna até que cozinha e serviço tomam jeito.
- Depois de um jantar memorável, todos se abraçam e choram de emoção. O chef famoso dá um tapinha no ombro do comerciante e o abandona à própria sorte.
O episódio do restaurante de São Paulo seguiu, com mínimas variações, o enredo de danação iminente, superação e redenção. Jacquin não tem o talento de bedel do Inferno que sobra em Ramsay. Mas ele –eu não o conheço pessoalmente –parece esforçado no desempenho do papel de carrasco.
Se o roteiro é igual para todos os lugares, há de se deduzir que falta a alguns donos de restaurante ver “Pesadelo” e açoitar os funcionários até o negócio entrar nos eixos. Ou, mais provavelmente, que estamos diante de uma obra de ficção. “Reality” é uma palavra usada com frivolidade para definir esse tipo de atração.
De volta a “Mestre do Sabor”. Não estreou ainda, então não posso resenhar. O abandono da gritaria é positivo. Duvido, porém, que tenha qualquer vestígio de realidade. Camadas e mais camadas de verniz global fazem até o “Jornal Nacional” parecer novela.
Se quiser realidade, desligue a TV. Pegue uma receita e vá para a cozinha se cortar e se queimar até aprender a fazer direito. Pode gritar à vontade consigo mesmo(a).