Por que os entregadores de comida não nos matam?
O almoço veio de moto, como tem sido comum. Quando a comida saiu do restaurante, o aplicativo me enviou uma mensagem com o nome do entregador: Francisco Nogueira.
“De repente é primo.” Num instante, matutei sobre o homem que traria a minha boia. No instante seguinte, passou. Sempre passa, mais rápido do que uma 125 com escapamento aberto.
A massa de motociclistas a serviço das empresas de entrega é invisível para nós, clientes exilados dos restaurantes de patrão. Mas às vezes pensamos neles.
Pensamos neles quando o retrovisor é arrancado por uma moto à toda, entre as faixas de rolamento da avenida Rebouças.
Pensamos neles quando a comida começa a demorar mais do que desejávamos.
Pensamos neles quando vêm dando grau –empinando a moto– pelo caminho, e o queijo derretido escorre todo para uma só banda da pizza.
Nas outras situações, somos indiferentes. Dá para ser pior.
Tome o pateta de camiseta azul que esfregou o indicador direito no antebraço esquerdo, para mostrar a pele branca, e disse ao motoboy do iFood: “Você tem inveja disso aqui, morou?”.
Foi no condomínio Vila Bela Vista, em Valinhos (SP), alguns meses atrás.
Nesta semana, veio à tona um episódio igualmente aterrador de racismo contra um entregador de comida em Goiânia.
O portador foi barrado na portaria do condomínio onde deveria fazer a entrega. Pelo aplicativo, a cliente mandou três recados à lanchonete.
O primeiro: “Esse preto não vai entrar no meu condomínio”.
O segundo: “Favor mandar outro motoboy que seja branco”.
O terceiro: “Eu não vou permitir esse macaco”.
Sorridente por trás da máscara, o motoboy goiano gravou um vídeo para agradecer a solidariedade nas redes sociais; o entregador paulista foi altivo, mas polido, enquanto respondia à chuva de ofensas. Tratou por “senhor” o vomitador de impropérios. Sintomático.
Ambos foram pacíficos ante a agressão abominável.
ATUALIZADO EM 5/1/21: Investigações posteriores apontaram que a entrada do entregador no condomínio foi vetada porque ele não portava um endereço completo para a entrega. A portaria não exibiu nenhuma imagem do motoqueiro a nenhum morador. O usuário do iFood que proferiu as ofensas usou CPF falso e estava em outro estado no dia do episódio.
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Lá pelas tantas em “Django Livre”, Calvin Candie –fazendeiro do Mississippi interpretado por Leonardo DiCaprio– põe uma caveira sobre a mesa de jantar.
O crânio pertencera ao velho Ben, escravo de companhia do próprio Calvin, de seu pai e do pai de seu pai.
“Eu passei a minha vida toda bem aqui, rodeado de rostos pretos”, conta o sinhozinho do filme de Quentin Tarantino. E pergunta: “Por que eles não nos matam?”.
Se tão mais numerosos, por que não se rebelam?
No filme, Candie justifica a submissão com frenologia –baboseira pseudocientífica em voga no século 19. Lixo racista que não explica nada.
A pergunta de Calvin Candie ainda está no ar. Ela vale para os entregadores de comida. Vale para as domésticas. Para os porteiros, balconistas, garis, a criadagem em geral.
Por que eles não nos degolam e põem a cabeça sobre a mesa de jantar? Talvez seja melhor não saber.
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